Imagine
uma chorona encontrando-se com um poetinha... Comecei a imaginar essa
loucura porque no dia 17 de outubro, uma grande colecionadora de
primeiras ações – primeira pianista de choro, autora da primeira
marcha carnavalesca (“Ô abre alas”), primeira mulher a reger uma
orquestra no Brasil –, Francisca Edwiges Neves Gonzaga, mais
conhecida como Chiquinha Gonzaga, faria 166 anos. E no dia, 19 de
outubro, se estivesse vivo, o diplomata, dramaturgo, jornalista,
compositor e, é claro, poeta Vinícius de Moraes faria 100 anos.
Ambos
nasceram no Rio de Janeiro, ambos tinham uma relação especial com o
carnaval. Ambos foram artistas brilhantes e levaram a vida de uma
maneira intensa: sem amarras, sem convenções, lapidando seus
talentos, sem medo de amar enquanto houvesse chama... Se fossem
contemporâneos, será que se esbarrariam?
Chiquinha
Gonzaga, desde cedo, frequentava rodas de lundu, umbigada e outros
ritmos oriundos da África, nesses locais buscava sua identificação
musical com os ritmos populares que vinham das rodas dos escravos.
Vinícius de Moraes frequentava a boemia carioca, era um boêmio
inveterado, fumante e apreciador do uísque, era também conhecido
por ser um grande conquistador. Acho que dessa abundância de vida
vinha a inspiração para seus lindos sonetos. Vida com tudo que
pertence a ela, inclusive a apreciação pelas mulheres. Ele se casou
nove vezes; Chiquinha Gonzaga, três. Mas, convenhamos, por se tratar
de uma mulher que vivia no século XIX, essas três vezes
corresponderiam seguramente às nove de Vinícius.
Caso
fossem contemporâneos, será que ele se apaixonaria pelo talento de
Chiquinha? Seriam parceiros? Ela no piano, ele na poesia? Será que
trocariam choros em melodias, em lágrimas e em versos?
Eles brilharam também no teatro. Ela, em
1911, estreou seu maior sucesso no teatro: a opereta Forrobodó, que
chegou a 1500 apresentações seguidas após a estreia - até hoje o
maior desempenho de uma peça desse gênero no Brasil. Em 1954, ele
escreveu a peça Orfeu da Conceição, feita em versos, baseada no
mito grego de Orfeu, mas ambientada no morro carioca e representada
por negros.
Ambos
também polemizaram a sociedade de sua época. Chiquinha era
convidada para saraus no Palácio do Catete, a então morada
presidencial, e, em um recital de lançamento do Corta Jaca, a
própria primeira-dama do país, Nair de Tefé, a acompanhou no
violão, e empunhou o instrumento, tocando um maxixe composto pela
maestrina. Isso foi considerado um escândalo para a época.
Vinícius, por sua vez, foi enquadrado como subversivo e expulso do
Itamarati, por ordem do então presidente Arthur da Costa e Silva.
De
tudo em comum o mais forte é mesmo o talento descomunal e o prazer
indescritível pela vida, pela arte, pelas festas... Ambos exalavam
desejo em compor, em estar rodeados de amigos, em buscar felicidade
ainda que quebrando regras e convenções. Ambos viveram no tempo de
Vínicius, o “quando”, não importando a época, somente viver.
Acho
que iniciei essa viagem porque o que eu gostaria mesmo é de ter sido
contemporânea dos dois, para vê-los atuando ao mesmo tempo. No meu
devaneio, ele, amante das mulheres, das nádegas e das saboneteiras
femininas, recitaria para ela um trecho de seus sonetos: “...E a
coisa mais divina/Que há no mundo/É viver cada segundo/Como nunca
mais...”. Ela reconheceria esses versos como uma filosofia de vida
e talvez o fizesse enlouquecer e se perder ao som sedutor de algum
maxixe: “Pança com pança/Bate com jeito/Entra na dança/Quebra
direito/Quebra direito...”. E ai, quem sabe, ele a chamaria para
dançar. Vinícius tinha muitos talentos, mas será que sabia dançar?
Poética
De
manhã escureço
De
dia tardo
De
tarde anoiteço
De
noite ardo.
A
oeste a morte
Contra
quem vivo
Do
sul cativo
O
este é meu norte.
Outros
que contem
Passo
por passo:
Eu
morro ontem
Nasço
amanhã
Ando
onde há espaço:
– Meu
tempo é quando.
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