Como de costume, eu estava fazendo minha caminhada matinal pelas
alamedas de Brasília
apreciando especialmente os ipês amarelos que começavam a florir,
contrastando com o céu azul
quando passei em frente à janela de um dos blocos perto de minha
casa e a figura solitária de um senhor, de seus 70 anos, me chamou a
atenção.
Esse trajeto eu percorria há dez anos e, a exceção de alguns dias,
ele sempre estava lá, cumprindo o mesmo ritual. Sempre sozinho.
Parei para observá-lo.
Comecei a imaginar o porquê e há quanto tempo
seriam mais de dez anos?
esse senhor estaria ali, sozinho, parado, observando com certa
nostalgia, o que se passava fora de sua casa. Fantasiei que, talvez,
no início, seu horizonte fosse menos encoberto, as árvores menores
atrapalhariam menos a sua visão. Depois, com o passar dos anos, a
paisagem teria mudado, as árvores crescidas já haveriam encoberto
grande parte dos prédios da frente, o parquinho, a quadra de
futebol, talvez restasse apenas a vista do imenso céu azul, ou
nublado, nos dias de chuva.
Imaginei se ele se sentiria sozinho e ao me lembrar de como cada vez
mais as pessoas se tornaram individualistas, egoístas, projetei que,
em um futuro não muito distante, talvez exista um mundo repleto de
pessoas solitárias, cada qual em seu apartamento, avistando a
paisagem ideal, perfeitamente construída em seus imaginários.
Tal qual a paisagem “ideal”, muita gente quer uma vida “ideal”:
sem exigências, sem sacrifícios, sem generosidade, sem espaço para
abrir mão do sossego, do dinheiro, do corpo perfeito, das viagens a
qualquer tempo, de viver sem precisar dar satisfação.
Uma vida sem dívidas, sem ruídos, sem discussões, sem bagunça,
sem opiniões externas que diariamente te fazem refletir sobre suas
convicções cristalizadas.
Uma vida sem sorvete derramado no chão, sem copos quebrados na
cozinha, sem rabiscos na parede, sem cabelos no ralo, sem roupas
espalhadas, sem noites veladas.
Porém, sem beijos de borboleta, sem pernas que se entrelaçam
durante a noite buscando a pele já tão conhecida que se confunde
com a sua. Sem ter ao seu lado alguém cuja intimidade é tão grande
que advinha seus pensamentos, seu olhar. Sem uma mão que te toca e
conforta, fazendo-se desnecessárias quaisquer palavras...
Uma vida sem ter quem saiba que você odeia jiló, mas adora melancia
e tempera tudo com noz moscada. Sem ter quem saiba que você dorme
demais, mas que se for acordada com um beijo, vai sempre levantar de
bom humor.
Continuei a observar o incógnito senhor e comecei a imaginar se ele
teria sido um jovem que renunciou à convivência diária, às
discussões, nem tão diárias, ao choro de crianças, às cobranças
femininas e masculinas que te fazem aprender a lidar com fraquezas,
ciúmes, inseguranças, parentes, TPM, cervejadas, gritos, dívidas
por causa de viagens ou do cursinho do caçula. E como recompensa
teria conquistado uma vida confortável, organizada, com tempo de
sobra para apreciar e idealizar um horizonte perfeito. Porém,
solitária, talvez vazia...
Quem sabe ele teria escolhido a tranquilidade de não ter conflitos
por só precisar conviver com suas questões; de não precisar dar
satisfação a ninguém; de ter uma casa limpa, silenciosa e
organizada.
No meu devaneio, no futuro haveria um mundo repleto de janelas com
lindos horizontes a serem contemplados sem pares. Contemplados por
pessoas que optaram pelo isolamento para não se machucar, para não
cair e precisar se reerguer, por medo de talvez perder, talvez
precisar modificar suas convicções, talvez precisar ceder,
sofrer... Janelas repletas de vidas cômodas e vazias.